O Tzimisce Catalin Dalcan caminhou entre os mortais, como faz todos os anos, na mesma data. Catalin não se lembrava direito de quando começou com isso. Mas aquela era uma noite importante. Sentia dentro de si a vontade de sair e comungar com outros dragões, outras pessoas. Aqui no Novo Mundo, a festa de São João Batista era o mais próximo que conseguia.
Ao ver as festanças, danças e costumes, flashes de memória invadiam sua mente, evocando tempos remotos, uma outra era, quando na base dos Montes Cárpatos ele e seu senhor caminhavam em direção à floresta, para encontrar outros Dragões e juntos realizar os rituais de Kupala. Mas Catalin não tinha senhor. Então as memórias pareciam apenas devaneios de outros Dragões. ecos de memórias que não eram suas.
Eles faziam grandes fogueiras, cantavam cânticos, se banhavam em rios e trocavam guirlandas feitas daquilo que a terra tinha a oferecer de melhor. Durante uma noite, as guerras e disputas políticas eram deixadas de lado. Os Kolduns comungavam com a terra e com os antigos espíritos. Com o tempo, o Cristianismo deu novos ares a esse ritual, novos sentidos, calcados em sincretismos religiosos.
Especialmente aqui, no Novo Mundo, em Pindorama, Catalin descobriu novos espíritos, novas tradições e novos costumes. Mas estava sozinho. Não havia outro Dragão Koldunista com quem pudesse dividir esta noite. Então, toda noite de Kupala, ou de São João, ele saía e caminhava entre os mortais, em busca de um pouco daquilo que vivenciava no passado.
Enquanto caminhava pela festa, Catalin se pegou sorrindo com os jovens que tentavam alcançar uma cesta de prendas no alto de um poste ensebado. Se divertiu com o concurso de danças típicas que, como a essência do Dragão, misturavam velhas tradições com modernismos. Ele inclusive ganhou uma pelúcia e uma caixa de pequenos embrulhos de pólvora que explodiam quando eram arremessados ao chão. Ainda não sabia o nome daquilo, mas achava divertido. Ganhou os prêmios quando derrubou todas as latas do homem com um bigode pintado com lápis de olho, que o desafiou a arremessar uma bola de meias contra elas. O homem, aliás, pareceu ficar extremamente feliz ao receber o pagamento em uma moeda de ouro.
A festa era muito colorida, cheia de vida e música. O cheiro das comidas, majoritariamente feitas de milho e amendoim, se misturava ao aroma das fogueiras, onde os bravos pulavam sobre as chamas. Mas outro cheiro se destacou naquela noite: a colônia característica do homem que incessantemente caçava Catalin, o líder da Coalizão na cidade, Coronel Lopes.
O militar, com uma cicatriz na face, encarava o Dragão com seus olhos cinzentos. Um misto de ansiedade e nostalgia preencheu Catalin, que calmamente caminhou até o homem e ofereceu o saquinho de papel que carregava.
— Você quer? Me disseram que se chama bolinho caipira. Eu experimentei… mas não é pro meu… paladar… — disse o Dragão.
— O que você está fazendo aqui? Não sabia que demônios gostavam de festa junina.
— Ah, é assim que chamam então… hahaha… faz bastante sentido com o mês em que ela ocorre… me perdoe, achei que era apenas festa de São João, por isso eu vim… — respondeu o Dragão, se divertindo.
— Você é devoto agora? Vocês não queimam quando entram na igreja ou algo do tipo? — perguntou o militar, irritado.
— De certo modo… sim… podemos dizer que sou devoto de São João… alguma faceta do primo de Cristo… disse o Dragão, misterioso. — Ele e o homem ficaram em silêncio quando algumas pessoas passaram cumprimentando o militar.
— O que você realmente está fazendo aqui? — perguntou o militar por fim, levando a mão à arma na cintura. Memórias novamente encheram a cabeça de Catalin. De outros tempos, agora mais recentes. Daquela mesma cena, de outra perspectiva. Ele fechou os olhos e respirou fundo, mesmo sem precisar.
— Lembrando, eu acho… disse o Dragão, confuso. Desculpe… foi indelicado da minha parte vir até aqui assim. Não sabia que estaria aqui… vou me retirar. Você pode deixar seus homens à paisana à vontade.
Catalin disse isso, e o homem pareceu surpreso ao descobrir que o vampiro já havia identificado seus homens andando casualmente entre as pessoas na festa. O Dragão fez uma mesura e começou a caminhar.
— Eu vim à festa exatamente atrás de você. — disse o Militar.
— Por favor, senhor Lopes, poupe seus homens e essas boas pessoas se divertindo. Hoje é um dia santo. Não há por que eu derramar sangue inocente.
— Não vim caçá-lo. Seu dia ainda vai chegar. Eu tenho ordens superiores. — disse o militar, irritado, tirando um envelope do bolso do casaco.
— Não sei que pessoas você enfeitiçou no alto escalão, demônio, mas alguém está muito mais preocupado com outros monstros do que com você. — disse, entregando o envelope para Catalin.
O Dragão abriu. Dentro havia fotos de satélite e um relatório da polícia. Falava de um internato de freiras que fora invadido. Algumas estavam desaparecidas. As imagens mostravam um acampamento no alto da Serra da Mantiqueira. As freiras estavam amarradas a um tipo de estaca no centro do acampamento. Cinco indivíduos eram visíveis nas fotos de satélite. O sacrifício de virgens era incomum, mas não improvável na noite de Kupala.
— Por que você mesmo não resolve isso, senhor Lopes? — indagou Catalin. Eram apenas vampiros, novatos provavelmente tentando algo que só ouviram falar em boatos.
—Olhe as imagens termais na próxima folha. — disse o militar, apontando para a página e olhando em volta para ter certeza de que ninguém bisbilhotava a conversa.
Nas fotos termais do satélite, Catalin só conseguia ver as freiras. Os cinco homens não apareciam. Mas o que causava espanto ao militar da Coalizão não era a ausência de calor nos vampiros, e sim as enormes figuras no meio da floresta, com uma leitura corporal gigantesca. Garous, no mínimo. Ou talvez abominações guardando os cinco homens. Provavelmente o Sabá.
—Meus superiores pediram para te informar que, se uma gota de sangue mortal cair naquela terra esta noite, você não será perdoado. Não por mim, ou por eles… mas você sabe por quem…
O militar disse, e Catalin ficou sério. Aquilo não era uma ameaça. Era uma promessa. Uma promessa que ele mesmo havia concordado séculos atrás, quando chegou a esta terra. Estudou as imagens por mais alguns segundos e então devolveu o envelope ao coronel, com uma expressão séria.
— Diga a seus superiores que não deixem nenhum homem de vocês se aproximar da serra nesta noite. As irmãs serão entregues intactas na catedral. Eu farei minha própria oferenda a Kupala esta noite.
E então caminhou para um canto, longe dos olhos curiosos, e desapareceu, comungando com a terra.
Em poucas horas, as irmãs estavam nas portas da catedral, sãs e salvas. Em seus depoimentos à Coalizão, contaram como a própria terra se abriu para engolir os homens que as sequestraram e como um anjo de luz do Senhor as levou até ali.
Lopes correu para verificar as imagens de satélite do local.
Sangue pintava o chão. Uma grande fogueira ardia no centro, onde antes estavam as estacas. E sentado ao lado da fogueira, com uma guirlanda de flores na cabeça e olhando para o céu com um sorriso no rosto, estava Catalin Dalcan.
Seus pés descalços se envolviam com a terra e carregavam folhas secas conforme ela caminhava pelo bosque. As pedras e árvores ainda carregavam as marcas dos ataques, com cascas furadas por balas e rasgadas por garras. Os veios e protuberâncias que rompiam o solo estavam manchados pelo sangue daqueles que ousaram profanar o bosque, e a vegetação fora queimada pelo fogo purificador que extirpou os invasores. Nada no universo era mais importante para Thayla do que o bosque. Aquelas criaturas pagaram caro por invadir e profanar seu lar.
Ver o bosque naquele estado invocava emoções confusas em Thayla. Sentia tristeza por ter ferido e maculado o local sagrado ao invocar estalagmites do chão para empalar as criaturas. Mas, por outro lado, sentia raiva, ódio, rancor e regozijo por tê-los feito pagar pelo erro. Às vezes, porém, a besta exigia mais. Em seu âmago, Thayla queria caçar um por um dos deuses da morte do Sabá, mas nem todos os seus irmãos de clã aprovavam isso. Havia outro inimigo, tão forte quanto, algo para o qual nem mesmo os inimigos dos Dragões estavam preparados.
Para conter sua fúria, a Tzimisce se voltou para a única coisa que lhe trazia paz: cuidar do bosque. Com ferramentas, sementes e adubos em mãos, ela se colocou a trabalhar na terra. Poderia, é claro, invocar os poderes do sangue para restaurar as forças do bosque, realocar os minerais do solo, a água dos lençóis freáticos e redirecionar a energia de plantas mais fortes para as mais fracas. Mas não era o que queria agora. Não era o que o bosque precisava. Às vezes, o mais simples é o mais poderoso para se unir à terra. A maioria dos vampiros via o koldunismo como um abuso da terra. Os verdadeiros Dragões entendiam que o koldunismo era uma comunhão, uma parceria. Não importava o poder do Tzimisce, a terra só respondia ao que lhe convinha. O Dragão era mera ferramenta que direcionava o poder.
Thayla ficou durante algumas horas cuidando do solo, rastelando o chão, separando as cinzas, o lixo e a vegetação. Puro e simples trabalho manual. A única coisa sobrenatural funcionando era a própria Thayla e sua ligação com o jardim. Por isso, ela sentiu quando sua visita chegou, mas não foi o suficiente para que a Tzimisce parasse suas atividades.
— Você levaria muito menos tempo se colocasse os carniçais para trabalhar... — A voz de Anastasis Laurent veio em meio às árvores. Sua irmã de clã estava com uma aparência comum; seu rosto não estava marcado com as diversas intervenções de Vicissitude. Estava pronta para uma ocasião social.
— Ninguém substitui o artista original — Thayla respondeu, limpando a terra das mãos no vestido. — Não é isso que você sempre diz?
— Touché! — A irmã de clã respondeu. As duas trocaram um aperto de mão firme e um sorriso.
— A que devemos a honra de sua visita? — Thayla perguntou, estudando a outra Dragão.
— Preciso de sua ajuda...
— Minha? Onde estão seus famosos carniçais de guerra? Eles não são super eficazes, coisa e tal? — brincou Thayla.
— Ha-ha! Muito engraçado! Nenhum deles tem os seus... dotes... — explicou a Fênix de Ossos. Anastasis ganhou esse apelido porque sempre voltava das batalhas, mesmo quando aparentemente morria.
— Eu sabia... finalmente resolveu se entregar aos meus encantos. Me sinto lisonjeada, Anastasis, sério! Mas não estou buscando nenhum relacionamento agora... — disse Thayla, divertida. Sabia que a piada incomodaria a irmã de clã, que imediatamente ficou vermelha. Estava usando o frescor de vida, então realmente tivera algum evento social mais cedo.
— Não! Não é nada disso! Você é uma mulher linda, sim, mas não é isso que busco! — disse, tentando explicar. Thayla soltou um risinho divertido.
— Então não é por mim que está toda apresentável hoje? O que houve com sua maquiagem de guerra? — Thayla perguntou, sentando-se numa pedra. Era divertido ver a temível guerreira toda embananada.
— E-eu fui ver os Toreador... preciso de um historiador... — a outra explicou, sentando-se ao lado de Thayla.
— E por que a professora de artes Priscila Laurent — é essa sua máscara agora, né? — precisa de um historiador? Quer confirmar aquele boato de que o Aleijadinho era um Tzimisce? — Thayla disse.
— Mas você tá engraçadinha hoje, hein? O motivo de eu precisar de um historiador é o mesmo motivo de eu precisar de você! — disse, ríspida. — E-eu encontrei uma coisa... enterrada...
A atenção de Thayla se voltou completamente para a irmã de clã. Desde a previsão, ela estava obcecada com o inimigo vindouro. Estava procurando, onde quer que fosse, armas e aliados.
— A faculdade... eles estavam fazendo estudos geológicos e encontraram uma urna, bem antiga... preciso confirmar com historiadores, mas... — ela disse, empolgada, e Thayla se manteve em silêncio. — Pode ser um dos Antigos, que chegaram aqui antes dos Toreador e Lasombra...
— E você precisa dos meus poderes para trazer isso à superfície e colocar outra coisa no lugar sem que ninguém perceba, correto? — Thayla perguntou, entendendo toda a necessidade da irmã. Se ela achava que um vampiro secular podia ajudar, Thayla confiava no julgamento da outra Tzimisce.
— Sim... é isso... se não for nada, nós devolvemos e deixamos os mortais encontrarem. Mas se for algo... eu preciso que você ocupe o local com outra coisa... e... — A frase morreu no meio, absorvida pelos barulhos da noite no bosque.
— E???
— Se... se realmente for alguém que procuramos... eu vou precisar escondê-lo aqui...
— Aqui? Você tem três outros irmãos com seguranças muito bem equipados... por que não pede a eles? — Thayla disse, um pouco revoltada. Não gostava de estranhos no bosque.
— Eles não podem saber. Não ainda. O Vermelho está envolvido com os Hecatas, e o Branco... bem, com o que ele não está envolvido? O risco de a informação vazar é muito alto! — Anastasis explicou, citando os outros dois Dragões que formavam uma coterie com as duas mulheres. Cada um dos Cinco representava uma cor.
— E o Azul? — perguntou Thayla sobre o último membro da coterie.
— Ele ainda está... — E Laurent fez um movimento com o dedo apontado para a cabeça e girando no ar, como quem diz "maluco".
Thayla ficou em silêncio, pensativa, ponderando todos os poréns de receber alguém ali. Faria o que pudesse pelos irmãos de sangue, pelos quatro Dragões com quem compartilhava o mesmo senhor, mas colocar o bosque em risco era outro porém. Ali era seu refúgio, seu santuário, seu lar. Mas havia coisas, que a Besta e a fome queriam mais que o coração de Thayla.
— Certo, mas com uma condição... — disse por fim, se levantando. Anastasis ficou em silêncio, esperando a condição.
— Quando... e isso vai acontecer... eu for atrás dos deuses da morte do Sabá, você vai ficar ao meu lado. Vai ser minha paladina e cavaleira em armadura de ossos. Minha campeã.
Anastasis Laurent ficou em silêncio, encarando a irmã. Se entregar assim à vontade da outra não era do feitio de Anastasis. Mas a Bruxa do Bosque, Thayla Cespuglio G’ravel, tinha seus encantos. Um deles era parecer saber o que o coração dos outros desejava. E a própria Anastasis desejava levar a guerra aos autointitulados deuses da morte em algum momento.
— Se não morrermos... eu estarei com você. Você sabe... — disse por fim a Tzimisce, senhora dos ossos e dos carniçais de guerra.
— Perfeito! — Thayla disse, sorrindo. — Você lidera o caminho! — e apontou o bosque, em direção à saída. Anastasis levantou e caminhou ao lado da irmã, ansiosa. Era uma boa troca, mas primeiro vinha o inimigo à frente.
— Sabe... — disse Anastasis enquanto caminhavam, e Thayla a olhou, levantando uma sobrancelha. — Eu poderia fabricar quantas de você eu quisesse...
Thayla parou e olhou para a irmã, incrédula, e por um segundo a Fênix de Ossos temeu perder seu apoio. Então a bruxa sorriu um sorriso zombeteiro. A terra começou a engolir as duas Tzimisce, como se elas fizessem parte de cada grão que formava o planeta. Antes de se fundirem completamente, Anastasis pôde ouvir um sussurro.
— Ninguém substitui o artista original...
Em nenhum outro canto do Vale do Paraíba, tampouco do Brasil, a neve existia, senão ali. Não no palacete, nem na região onde viviam. Ali, na presença do Dragão Branco, como uma aura, a neve caía apenas à sua volta, e o frio intenso preenchia o ar ao redor. Em meio à imensidão do branco que se formava no jardim da mansão, com os pequenos flocos que desciam a cada passo do Tzimisce, apenas algumas coisas se destacavam: as inscrições vermelhas no kimono do Dragão, seu cabelo negro e o pequeno balde de madeira que ele carregava.
Por todo o palacete reinava o silêncio. Os homens que serviam ao Dragão estavam perfilados nas laterais do jardim, observando enquanto o mestre realizava seu ritual anual. Um misto de solenidade e melancolia pairava no ar. Da primeira pedra do jardim, imóvel, a menina observava seu senhor, o mais poderoso dos Tzimisce que já conhecera, vulnerável, naquela única noite do ano.
O Dragão ajoelhou-se no chão de terra batida, diante de uma pedra cinza com inscrições antigas. A jovem Tzimisce não entendia o que estava escrito, mas sabia bem o que significava: Ajisai, o nome da mulher que Shiroiyuke Kenshin, o Dragão da Neve Branca, amou incondicionalmente e que a fatalidade de uma vida violenta ceifou.
Kenshin raramente falava de Ajisai. Seus sentimentos ficavam dedicados aos poemas e às obras de arte que, vez ou outra, criava. Ou então, escapavam quando sucumbia às compulsões da Besta, e o nome da amada surgia em seus lábios e olhos como uma sentença para quem estivesse por perto. A maioria dos vampiros acredita que a maldição do Abraço está nas compulsões ou na perdição que o clã impõe. Mas a jovem Tzimisce via diferente: a verdadeira maldição era a solidão. Era perder quem se ama.
Gentilmente, Shiroiyuke Kenshin derramou a água sobre a lápide de pedra, limpando as impurezas do tempo e as folhas velhas que ousaram cair ali. Sua mão retirou um incenso de dentro do kimono e o instalou no suporte de pedra. Magicamente, o incenso acendeu-se, preenchendo o ambiente com o perfume de hortênsias e maçã. As mãos do Dragão Branco se uniram em oração, e ele fechou os olhos. Nesse instante, a neve no jardim se intensificou.
Os flocos cobriam a mansão com uma camada branca, como as lágrimas que Kenshin não tinha coragem de derramar. O Dragão que duelou com monstros e lendas, cuja lâmina enfrentou Garous e desafiou o tempo, que combateu feiticeiros capazes de dobrar a realidade, agora temia seus próprios sentimentos.
Seus irmãos de clã diziam que a temida montanha de gelo havia sido derrotada pela doçura de Ajisai, a flor azul que simboliza amor, adoração, fidelidade e perdão. A flor que os gaijin chamam de hortênsia, e que agora a garota levava até o túmulo, ajoelhando-se ao lado do pai e depositando a flor aos pés da estrutura de pedra.
Curiosamente, a Ajisai perde todas as folhas no inverno, mas resplandece no verão. Kenshin, o Dragão que carregava consigo o frio eterno, culpava-se pela morte da esposa. Mas se em algum momento teve calor em sua vida, foi por intermédio dela. Nessas raras ocasiões, dizia que Ajisai era seu único verão.
A garota achava aquilo bonito. Mesmo sem ter experimentado algo parecido, duvidava, no fundo, que algo assim realmente existisse. Essa era a verdadeira mágica do pai, um amor impossível.
Os ensinamentos Koldun variam de Dragão para Dragão. Alguns comungam com montanhas, outros com bosques. Cada Dragão tem sua forma de se unir à terra. Shiroiyuke ensinou diferente à sua filha. Na concepção do Dragão da Neve Branca, os poderes vêm dos Kami, espíritos que habitam todas as coisas, e dos antepassados e entes queridos que já partiram. Eles são o elo entre o mundo espiritual, a terra e o poder que ela oferece.
Uma vez por ano, um Dragão deve renovar esse pacto. Prestar respeito a quem lhe concede força. Para Shiroiyuke, era a falecida esposa.
Pai e filha se levantaram, trocando um raro e breve abraço. Os olhos da garota encontraram os do velho Dragão.
— O que você disse a ela? — a garota perguntou.
— Pedi proteção... pelo que virá. Que não me falte força nem serenidade — respondeu o Dragão, com a voz embargada. — E você ?
— Agradeci à mamãe por nos proteger todos esses anos — disse a garota, finalmente derramando uma lágrima pela mãe. — Disse que espero não a decepcionar ao te defender…
— Você nunca a decepcionaria, minha filha… — disse o pai, levando o dedo para enxugar a lágrima de sangue que escorria do rosto dela. Ao seu toque, a lágrima congelou, tornando-se um cristal de gelo. — Você a orgulha todos os dias, com o nome que escolheu para lembrá-la. Hanako. A Criança da Flor.
Os dois Tzimisce se abraçaram com força. A neve cessou, e uma brisa leve e cálida surgiu, seguida de uma fina chuva — daquelas que ocorrem ao fim de um dia de verão, quando as gotas são mornas e gostosas de sentir na pele.
Pai e filha permaneceram ali, sentindo a chuva com todo o seu ser.
— Acho que ela está feliz — disse Shiroiyuke olhando para os céus. — Sim... muito feliz…
— E este é o último aviso! — O padre Viorel foi fatídico, quase ameaçador. — Essa vai ser a última vez que eu canto esse bingo! — encerrou ao microfone da quermesse.
O pátio da igreja estava especialmente cheio naquele dia. Pessoas de todos os cantos da cidade haviam comparecido. Havia bons prêmios no bingo naquela noite, e a banda contratada pelos acólitos era bastante famosa. Todo o dinheiro seria revertido para obras de caridade — ou assim pensavam os paroquianos.
O Tzimisce Dragos Viorel odiava tudo aquilo. Considerava desnecessário, uma perda de tempo, um escárnio da fé. Músicas sobre traição e amores não correspondidos? Acreditar que Deus atenderia pedidos por um carro zero quilômetro? A ideia absurda de que os acólitos manipulavam o sorteio para beneficiar alguém ligado à igreja. E o pior de tudo: ser carismático com o rebanho, como se eles não fossem apenas ovelhas — alimento para o pastor. Ainda assim, eram essas festas e essa simonia disfarçada de caridade emocional que sustentavam a igreja e a missão de Dragos Viorel, o Dragão Vermelho.
Seus quatro irmãos haviam tomado outros rumos: empreendimentos próprios, terras herdadas, fortuna acumulada ao longo dos séculos. Dragos, na vida e na morte, existia para a servidão. Tudo que fez e faz é pela missão: extirpar o mal do mundo. Mesmo que os vampiros sejam, em essência, filhos do mal, para eles está reservado um destino de fogo e cinzas ao fim do ciclo. Até lá, a máscara de padre era o meio pelo qual Dragos identificava os pequenos pecados que semeiam o verdadeiro mal e guiava os mortais por um caminho de disciplina e temor.
Apesar de desprezar as interações sociais que o papel exigia, o padre Viorel cumpria sua função com perfeição. Sempre pronto a cuidar do rebanho, ouvir lamentos, alimentar a fé. A quermesse era uma forma de manter a comunidade próxima — próxima o suficiente para ser julgada, ou usada.
Dragos desceu do palco após presentear Dona Margarida com uma super batedeira Master Blaster da marca mais famosa. A simpática senhora, regente do coro da terceira idade, havia vencido o bingo com apenas 10 pedras cantadas — o que Dragos pode ou não ter manipulado. Em seguida, ele caminhou pela festa, cumprimentando fiéis e inspecionando barracas e música. A noite estava perfeita. Sem frio, sem vento, sem chuva. As crianças corriam, os adultos saboreavam comidas e bebidas típicas. Uma paz quase mundana.
Entre os muitos poderes que um Koldunista desenvolve, está o de sentir tudo o que acontece em seu domínio. Há lendas sobre Tzimisces tão poderosos que percebiam uma gota de orvalho caindo do outro lado da cidade — ou de um país. Mas não foi esse poder que denunciou a chegada do visitante. Foi a súbita queda na pressão do ar, o vento ganhando força, uma fina garoa e relâmpagos cruzando o céu. Diante da casa paroquial, estava seu irmão: Márcio Teo, o Dragão Azul.
Márcio, outrora o imponente Dragão dos Céus, senhor dos ventos e dos raios, era agora um arremedo de homem. Enfrentara sozinho uma criatura saída dos piores pesadelos... e perdeu. Desde então, suas ações haviam perdido sentido. Sua mente estava turva. Como um dependente em crise de abstinência, ele vagava pela festa, procurando Dragos entre os visitantes.
— A paz, meu irmão... você não devia estar recolhido em seu refúgio? — indagou Dragos. Teo, ao vê-lo, correu e o abraçou com força.
— Não, não, não! Tudo mudou! Tudo! — respondeu, eufórico.
— Sim, essa é a máxima da nossa "família"... tudo muda. Anastasis concorda mais do que todos — replicou Dragos, tentando acompanhá-lo. Não era a primeira vez que o padre lidava com alguém fora de si.
— Ele reapareceu, Dragos... e-e-ele apareceu finalmente. Pode me ajudar…
— Quem apareceu, Teo?
— O Coração... — sussurrou como numa confissão.
— Que coração, meu irmão?
Dragos estava confuso. O estado mental de Teo tornava tudo duvidoso. Mas o fato de ele ter saído do refúgio já era um alerta.
— O Coração da Terra... nossa relíquia…
A resposta fez Dragos franzir o cenho. Aquele artefato havia desaparecido há décadas, roubado dos Kolduns por inimigos na Europa.
— Como assim? De onde tirou essa ideia? — perguntou Dragos, temendo outro delírio. Como o dia em que Teo jurou ter tomado café com Santos Dumont num shopping. Que, na verdade, era a cozinha de seu refúgio. Se Hanako, filha de Shiroiyuke, não tivesse chegado a tempo, Teo teria lançado o pobre homem num dos aviões de seu quintal.
— É um mortal! De várias faces... eu vi! O maldito nem sabe o que tem! Ou está mentindo. Ele tem que estar mentindo!
— Um mortal de várias faces?
— Sim, desses que aparecem na grande tela!
— Você quer dizer, um ator?
— Isso, um ator! Ele tem o Coração da Terra na sala de estar... e nem sabe o que é!
— Dificilmente um mortal saberia…
— Ainda bem! Já pensou se todos aqueles mortais da internet soubessem? Nunca conseguiríamos recuperá-lo! — disse Teo, aliviado, sem saber o peso de suas próprias palavras.
— Internet? — questionou Dragos, levantando uma sobrancelha.
— Sim! Instatok, Facedin, Youwich... esses aplicativos... mais de um milhão de views! — explicou Teo, como quem ensina tecnologia a um ancião.
Obviamente, Dragos sabia o que era a internet. Já ouvira incontáveis confissões envolvendo adultério, obsessão e vícios virtuais. E se Teo havia visto, outros também poderiam ter visto — dragões, magos, caçadores... Estavam contra o tempo.
— Vamos ao meu escritório. Você vai me mostrar o que viu — disse Dragos, conduzindo o irmão até a igreja. Com um olhar, invocou seus acólitos — carniçais leais que viviam por sua vontade. A ordem era clara: preparar-se. Aquela noite, eles iriam até a Camarilla.
Continua em: O Coração da Terra - Aventura para V5 - SJC by Night